O V Encontro dos Kujã
Nos dias 21, 22 e 23 de novembro de 2014, a capital do estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, região hidrográfica do Guaíba, originalmente com vegetação característica da Mata Atlântica e incidência de floresta ombrófila mista (floresta com araucária), na Terra Indígena Morro do Osso, um momento se fez. Marcado pelas narrativas, pelas memórias e reminiscências que compõem a figura dos Kujãs, líderes espirituais na sociedade indígena Kaingang, o V Encontro dos Kujã emerge no contemporâneo como um contraponto às assimetrias em relação aos direitos existenciais desse grupo indígena Jê Meridional.
As danças, as pinturas, os cantos enérgicos que ecoam a milênios no planalto meridional, hoje dão o tom de nossa existência enquanto continuidade, identidade e resistência de um povo que habita esse território a milhares de anos antes do presente, antes de senhores e escravos, de ricos e pobres, de patrões e empregados, quando vivíamos soberanos, absolutos, com dignidade e liberdade, numa lógica pautada no respeito com a natureza e sobrenatureza. Hoje queremos uma pauta concreta e própria, uma pauta que respeite nossa cosmologia. Afinal, historicamente fomos silenciados, oprimidos, tivemos nossos sagrados espaços apropriados pelos “visitantes” indesejados, onde a opção era a de aldeamentos diminutos ou a morte. Vimos nossas casas virarem cinza, nossas histórias e narrativas ridicularizadas e fomos entendidos como atrasados por quem pisava em nosso sagrado solo, nosso não no sentido patrimonial, mas como parte de nós.
Vimos o caos se manifestar na sua forma mais atroz, e com ele a morte. De nossos guerreiros, dos nossos velhos, das nossas mulheres, muitas inclusive escravas do corpo gélido e desumano de quem nos cassava a esmo, nem mesmo as crianças escaparam das garras de quem se dizia civilizado. Um país e um estado que se nega a admitir sua dívida histórica com os povos indígenas, um Estado que se “desenvolveu” e consolidou-se sobre os corpos dos nossos antepassados, onde o progresso e ambição lhe conferem as mãos encharcadas do sangue de nossos irmãos.
Isso é para lembrar que atualmente sobrevivemos em terras diminutas que foram demarcadas, e, na beira de rodovias, sem o mínimo de condições de um bem viver, nós, os Kaingang, somos a 3ª maior população de originários do Brasil, e hoje vivemos dias cinzentos e incertos, marginalizados em nossa própria terra, por uma sociedade que se fez sobre o nosso sofrimento.
Porém, aqui nesses dias e no improviso de estruturas, ressignificamos nossa luta e resistência, batizados na figura dos Kujãs, interpretado por muitos como eixo semântico na organização sociopolítica Kaingang. Não poderia haver relação mais prática, pois se o eixo semântico é o lugar virtual em que se articulam os pólos opostos criadores da significação, o Kujã tem exercido esse papel ao longo de nossa existência entre Kamê e Kairu, as duas metades que compõem o mundo Kaingang. Juntamente com outros seres e símbolos, o Kujã transita e totaliza as articulações nas supostas oposições das metades que são inexoravelmente indissociáveis e entre medicina tradicional, tradutor das falas da floresta, dançador, cantor e contador de histórias nostálgicas do nosso povo, essa figura é símbolo de nossa resistência.
Outros personagens do mundo Kaingang, como as parteiras tradicionais e os guerreiros dançadores, são no concreto o pulsar de uma identidade que aqui afirma e grita que não vai deixar de existir, pois somos os filhos da mata, os piolhos da mata, o espírito da mata, somos Nãn Gá, somos kokoj, somos pó, somos Ka fár, somos Jorge Kagnõn Garcia, somos Kaingang. E exigimos respeito às nossas pautas, exigimos que órgãos estatais dialoguem com nossos costumes, presentes nos Kujã, nas parteiras e valorize a farmacopeia tradicional Kaingang, exigimos da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Ministério da Justiça o reconhecimento de nossos territórios por parte do Estado brasileiro, solicitamos sua identificação e delimitação, seguida da demarcação e homologação nos termos do artigo 231 da CFB/1988, Decreto 1775/96 e Portaria 14/96.
Este evento exige um basta nas assimetrias e na falta de equidade na relação com os povos indígenas brasileiros que nem sequer têm a liberdade de expressar suas categorias etnológicas na resolução de problemáticas; um basta na criminalização de lideranças, que sejam feitas investigações sólidas nos crimes contra indígenas como o caso do professor indígena de Vicente Dutra; um basta na desproporcionalidade de força quando se trata de perseguir indígenas, que no seu mais recente caso na Terra Indígena Kanóia deixou a comunidade em estado de choque, com seu espetáculo de mostrar força.
Por fim, este evento reforça a importância na demarcação de terras indígenas, afinal sem a demarcação de nossas terras tradicionais, não teremos educação indígena de qualidade, não teremos saúde de qualidade, não teremos sequer nossa cultura. E aqui o movimento e resistência Kaingang se junta à pauta de outros contextos lationoamericanos, no emprego da categoria bem viver, essa categoria é o expressar da nossa posição étnica frente à sociedade, à natureza e à sobrenatureza, traduzindo nossos modos próprios de pensar, viver e sentir. E assim como para outros povos essa categoria é nossa resposta e alternativa às categorias impostas por agências estatais – tais como “etnodesenvolvimento”, “sustentabilidade” ou “desenvolvimento sustentável” – na busca por uma relação de igualdade, justiça e liberdade.
Não seria possível aqui dimensionar a cultura Kaingang latente nas atuais gerações, como já existiu e continua a existir, que busca no passado os sentidos de existência e resposta para constituir um bem viver indígena. Este que repousa na demarcação de terras indígenas.
Por fim, este documento traduz a voz e a representatividade das terras indígenas de Nonoai, Iraí, Vicente Dutra, Rio da Várzea, Inhacorá, Votouro, Xingu, Campo do Meio, Apucaraninha, Morro dos Cavalos, São Leopoldo, Ligeiro, Kandóya, Lomba do Pinheiro. Guarita, Tabaí, Morro Santana e Morro do Osso.
Porto Alegre, 24 de novembro de 2014
Comunidade Kaingang do Morro do Osso
Pronunciamento da comunidade kaingang Kandóia/Votouro
Nós, da comunidade kaingang de Kandóia-Votouro, queremos esclarecer o que vem ocorrendo na nossa região e que os meios de comunicação de maneira distorcida. Na nossa comunidade moram 70 famílias (ao redor de 220 pessoas) e vivemos há 13 anos nesse acampamento, no território onde moraram nossos antepassados, há mais de 500 anos. Estamos a espera da demarcação de apenas uma pequena parte desse extenso território.
Neste momento, estamos aguardando a assinatura do Ministro José Eduardo Cardozo para dar continuidade ao processo de levantamento fundiário para indenização dos agricultores situados nessa zona. Em uma reunião em Brasília no dia 18 de março de 2014, o Ministro se comprometeu em vir ao estado do Rio Grande do Sul para realizar uma audiência pública com indígenas e agricultores no dia 05 de abril (em anexo). No entanto, ele transferiu essa audiência para o dia 12 de abril e, em seguida, para o dia 25 de Abril, que também foi cancelada. Frente a esse desrespeito, nos mobilizamos para fechar a estrada e exigir nossos direitos.
No dia 09 de maio deste mesmo ano, foi convocada uma reunião de conciliação no Centro Cultural de Faxinalzinho, com o Prefeito do Município, o Secretário de Desenvolvimento Rural do RS, representante da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), entre outros. Pensamos que era uma reunião para solucionar o conflito, mas levamos uma facada pelas costas. A Polícia Federal chegou já no início da reunião e prendeu 7 lideranças kaingang que estavam presentes, sem qualquer mandato, ordem judicial ou intimação.
As crianças ficaram muito nervosas e começaram a chorar, o que foi imediatamente reprimido pelos policiais, inclusive com o apontamento de uma arma na direção de uma criança de dois anos, mandando-a se calar. No momento da prisão, começamos a falar na nossa língua e os policiais disseram que não poderíamos fazer isso: “parem de falar guarani”, disseram. Nem sabiam que língua estávamos falando. Eles deveriam estudar a nossa língua, já que nós estudamos a sua.
Os policiais riram da nossa cara e disseram que era nosso presente do dia das mães. Sentimos que eles estavam para tudo naquele dia, tinham aquela sede… Se os índios fizessem alguma coisa, a polícia mataria todos nós e faria uma festa.
Quando as lideranças foram presas, ficaram algemadas por três horas, de pé, sem água, nem banheiro ou comida. Não permitiram que se comunicassem com ninguém. Até agora, só sabemos sobre eles através do advogado, o que nos preocupa muito.
Depois das prisões, passamos a ficar totalmente isolados e perseguidos pela Polícia Federal. Os homens não podem sair da aldeia – nem para trabalhar e nem mesmo para ir ao mercado – porque a polícia está parando e entrando nos ônibus e intimando as pessoas, criando medo.
Esse abuso de autoridade por parte da polícia se repercutiu inclusive nas escolas. Na escola da Terra Indígena de Votouro/Benjamin Constant, os policiais entraram na sala de aula e bateram em um professor indígena na frente das crianças, para tirar informações sobre o ocorrido. Quando os indígenas pediram o mandato para fazer isso, os policiais disseram que não precisava de nada. Em outra escola, em Faxinalzinho, uma pessoa ofereceu 500 reais para que uma menina de treze anos desse informações.
A Polícia Federal também passou a fazer rondas em volta do nosso acampamento, e mesmo dentro dele, para intimidar-nos. Tivemos, assim, que cercar a aldeia e conversar com as crianças porque elas ficaram com muito medo: cada vez que veem uma pessoa branca, saem correndo.
Paralelamente à atuação da polícia, a mídia também passou a divulgar mentiras. Não invadimos a Prefeitura de Faxinalzinho, como foi noticiado. E também não estávamos impedindo o prefeito de sair de sua casa. Eles dizem que estão isolados, mas tem trânsito livre. Isolados estamos nós aqui dentro. Essas distorções tem acirrado a tensão nas relações com os vizinhos. Antes coletávamos madeira para lenha e artesanato nas terras ocupadas pelos colonos, e não tinha problema. Agora, eles já não nos deixam mais. Eles expulsaram as crianças que foram buscar lenha.
Estão nos discriminando até publicamente, falando que somos vagabundos, selvagens e “que índio não presta”. Assim, não estamos conseguindo nem produzir e nem vender o nosso artesanato na região.
Com esse clima de medo, até os agentes de saúde não estão querendo vir a aldeia. A enfermeira liga para a Secretaria, e eles não vem. E como o nosso motorista está preso, ela mesma está tendo que levar os pacientes graves, deixando a aldeia sem enfermeira. Um de nós necessitava uma consulta médica e o motorista da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) mandou ele esperar no meio do mato, escondido, a 5km da aldeia. Considerando o risco de realizar esse trajeto, ele não foi. Se queremos ser atendidos, temos que caminhar mais de 7km.
Frente a tudo isso, decidimos que não iremos à reunião do dia 22 de maio em Brasília devido ao fato de que, por um lado, pode ser mais uma reunião traiçoeira como a de Faxinalzinho e, por outro lado, o poder público não precisa que nós estejamos em Brasília para assinar um papel. Aproveitamos para reiterar nossas reivindicações: a demarcação imediata das terras indígenas de Kandóia/Votouro, Passo Grande da Forquilha, Rio dos Índios, e Irapuá. Exigimos a libertação imediata de nossas lideranças!
Comunidade Kandóia/Votouro
20 de maio de 2014